Senhor Presidente,
Foi com pesar que recebi a notícia do falecimento do amigo e grande jurista alemão Peter Häberle um dos mais influentes nomes do pensamento constitucional contemporâneo, que nos deixou nesta segunda-feira, 6 de outubro, aos 91 anos. Autor de mais de 50 livros e centenas de artigos, Peter Häberle efetivamente elaborou reflexões que transformaram e transformam a Teoria da Constituição, do constitucionalismo e das democracias contemporâneas.
Em breves palavras, destaco três eixos das grandes contribuições de Peter Häberle: 1) o caráter universal de sua obra, 2) suas contribuições para o constitucionalismo da América Latina e 3) sua influência no constitucionalismo e na jurisdição constitucional brasileiros.
A obra de Peter Häberle não se restringe a uma reflexão sobre o direito constitucional da Alemanha ou mesmo da Europa. Suas contribuições à teoria do direito e ao direito constitucional perpassam diversos teams destinados à construção de uma Teoria da Constituição democrática, em que o pluralismo convive com a abertura ao passado e futuro constitucional. Nessas dimensões, destaco duas grandes contribuições suas ao pensamento constitucional universal.
Häberle em argumento seminal apresentou sua Teoria da Constituição como ciência da cultura. Ele buscava integrar o direito constitucional positivo – afastando-se, portanto, de um paradigma jusnaturalista – com o seu contexto cultural, constantemente atualizado no tempo. A interpretação da Constituição não recai em unilateralismos formalistas (como se o direito fosse apenas norma desconectada da realidade) ou cético-realistas (apenas aquilo que é aplicado pelos tribunais). Sua proposta abre a compreensão adequada da Constituição para a relação texto e contexto, mutável no tempo e, portanto, em constante atualização de sentido normativo.
Como segunda contribuição ao pensamento jurídico em geral, destaco sua obra “Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição”, que tive a oportunidade e honra de traduzir para o português.
Com inspiração em Karl Popper, ele rompeu com o formalismo fechado da interpretação jurídica ao propor que a construção do sentido da Constituição é um processo plural, democrático e inclusivo, que se estende para além do círculo de juristas e do Estado. Sua visão da Constituição como uma “obra viva” que se nutre da participação ativa da sociedade, e cuja defesa compete não apenas às Cortes Constitucionais, mas a todos nós, nos lembra que a democracia não é um dado, mas uma conquista; que a liberdade não é herança garantida, mas tarefa diária; e que os direitos fundamentais não são dádivas, mas compromissos.
Peter Häberle contribuiu não apenas com a teoria do direito e da constituição em geral e âmbito europeu. Por décadas, dedicou-se também ao estudo dos desafios do constitucionalismo latino-americano em seu contexto histórico, político e social marcado por continuidades e descontinuidades democráticas.
Destaco, em 2024, a publicação em espanhol de seu “Libro constitucional, de lectura y de la vida latinoamericano”, em que reafirmou sua atenção constante ao Brasil e à América Latina, regiões com as quais manteve um diálogo intelectual intenso e generoso. A obra contou com apresentação de minha autoria e epílogo do professor Raúl Gustavo Ferreyra, destacado constitucionalista argentino e discípulo de Häberle, que tem contribuído para difundir e aprofundar o legado de seu mestre entre nós.
Nessa obra de folego impressionante, Häberle realiza um estudo comparado dos preâmbulos, previsões de direitos fundamentais, estrutura do Estado e da jurisdição constitucional, entre outros. Passa então a analisar propostas e perspectivas para um “Estado constitucional cooperativo” fundado em um possível “direito constitucional comum latino-americano” com uma perspectiva mais clara de integração e de proteção aos direitos humanos. A atualidade dessa reflexão lança as bases para se avaliar e repensar a compreensão das especificidades do constitucionalismo em nossa região marcada por fortes desigualdades e projetos democráticos ainda em vias de consolidação.
Por fim, gostaria de ressaltar a influência do pensamento de Peter Häberle especificamente no direito brasileiro – tema que debati com outros autores em artigos acadêmicos e, neste ano de 2025, levou à publicação da obra “Peter Häberle: Teoria Constitucional para a Democracia” com uma seleção de seus artigos e comentários. Destaco, também, a criação do Centro de Pesquisas “Peter Häberle” no IDP no ano de 2011, que tem realizado estudos e publicações sobre seu pensamento. Nesse momento de criação do Centro, ele esteve no Brasil pela terceira vez, como marca de sua presença não apenas intelectual, mas também pessoal em nosso meio.
Em primeiro lugar, a partir da ideia de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, a legislação brasileira (com destaque para a Lei 9.868/1999, Lei 9.882/1999, e, mais recentemente, o CPC de 2015) prevê a possibilidade de realização de audiências públicas e participação de amici curiae em diversos processos da jurisdição constitucional. Há, efetivamente, uma “abertura procedimental” da jurisdição constitucional para que ela se desenvolva em ambiente aberto, transparente e plural, em que as diferentes compreensões constitucionais são postas em diálogo para, ao final, adotar-se uma decisão para o caso, sem esgotar o potencial normativo da Constituição a mudanças sociais e jurídicas futuras.
Em segundo lugar, destaco a ideia do “pensamento jurídico de possibilidades” de Häberle. Fundado diretamente na sua visão da Teoria da Constituição como, também, ciência da cultura, Häberle aponta que a jurisdição constitucional deve estabelecer pontes interpretativas entre passado, presente, e, também, futuro, de modo a constantemente atualizar o sentido normativo da Constituição. Essa ideia permite que sejam pensadas novas categorias da dogmática constitucional para além do binômio rígido inconstitucionalidade/nulidade na busca de formas democráticas de concretização das normas constitucionais. Institutos como a modulação de efeitos, decisões aditivas, acordos na jurisdição constitucional – apenas para mencionar alguns – são exemplos eloquentes do impacto da Teoria da Constituição de Häberle no direito constitucional brasileiro, em especial na jurisprudência do STF.
A título de conclusão, destaco que o legado de Peter Häberle transcende fronteiras e gerações. Sua reflexão humanista e plural seguirá iluminando o caminho daqueles que veem na Constituição não um texto fechado, mas uma obra viva, comprometida com a dignidade humana, a paz e a cooperação entre os povos.
Como ele destacou em uma de suas diversas obras (“Textos clássicos na vida das Constituições”), ao destacar a importância das obras clássicas como forma de transmissão de experiência antropologicamente fundada para compreensão das Constituições: “a qualidade de um clássico não é apenas retrospectiva, mas também prospectiva, para o futuro.” Que possamos compreender a riqueza da obra de Peter Häberle como um verdadeiro clássico do direito constitucional contemporâneo de modo a permanecermos em diálogo com suas ideias voltadas à contínua atualização do sentido constitucional para a construção de uma sociedade mais igualitária e democrática, em ambiente internacional de cooperação entre os povos para paz e o respeito aos direitos fundamentais.
À sua família, expresso minhas sinceras condolências e meu respeito por aquele que foi, e continuará sendo, uma das maiores referências do pensamento jurídico e constitucional.